A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL, O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA E O NOVO CÓDIGO CIVIL

 

Inacio de Carvalho Neto[1]

 

 

A Constituição Federal de 1988 prevê as duas únicas formas possíveis de prisão civil: a do devedor de alimentos e a do depositário infiel (art. 5º., LXVII). Quanto ao devedor de alimentos, não há dúvida do seu cabimento, por força do art. 19 da Lei de Alimentos (Lei nº. 5.478/68) e do art. 733, § 1º., do Código de Processo Civil[2]. Neste ensaio, pretendemos discorrer brevemente sobre o cabimento da prisão do depositário infiel, demonstrando o equívoco da atual orientação do Supremo Tribunal Federal.

 

A prisão do depositário infiel era prevista no art. 1.287 do Código Civil de 1916 nestes termos:

 

“Art. 1.287 - Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos (art. 1.273)”.

O Decreto-Lei nº. 911/69 mandou aplicar as mesmas disposições para a alienação fiduciária, neste diploma equiparado ao contrato de depósito, cujo art. 4º. dispunha:

 

“Art. 4º. Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil”.

Tais disposições, entretanto, foram revogadas pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº. 27, de 26 de maio de 1992, e posta em vigor por meio do Decreto nº. 678, de 06 de novembro de 1992, publicado no DOU em 09 de novembro de 1992[3], cujo art. 7º., § 7º., prevê a exclusividade da prisão civil do devedor de alimentos:

 

“Art. 7º. Direito à liberdade pessoal. ...

§ 7º. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

 

É de se lembrar que as convenções internacionais, uma vez ratificadas, entram no direito interno na mesma hierarquia da lei ordinária, em conseqüência revogando as leis ordinárias (e decretos-leis) anteriores.

 

Aí se poderia questionar: não é a Constituição Federal quem prevê a prisão do depositário infiel? Não se trata de uma norma que, embora anterior, está em maior grau de hierarquia que a Convenção Americana? Sim, sem dúvida.

 

Mas a questão é outra: a Constituição de 1988, a nosso ver, não determina a prisão do depositário infiel, assim como não determina a prisão do devedor de alimentos; ela as permite. Sim, permite. Confira-se a redação do dispositivo constitucional:

 

“LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Parece claro que o objetivo da norma, que é de direito individual, não é determinar a prisão de quem quer que seja, mas, ao contrário, proibir, como regra, a prisão civil por dívida. Admite, contudo, as duas exceções, não como determinação, mas como mera permissão.

 

Ou seja: a lei pode prever prisão civil por dívida apenas nestes dois casos: do devedor de alimentos e do depositário infiel; em nenhum outro caso haverá prisão civil por dívida.

 

Mas ainda nestes dois casos, há necessidade de previsão legal. Não é a Constituição Federal quem prevê a prisão do devedor; ela apenas permite que a lei preveja. É preciso lei para tanto; sem lei, não há prisão civil por dívida nem mesmo nestes dois casos.

 

Para o devedor de alimentos, como já vimos, há previsão normativa expressa. Para o depositário infiel, contudo, a lei que existia foi revogada pela Convenção Americana, pelo que, segundo entendemos, passou a não ser mais possível a prisão do depositário infiel.

 

Por isso, com a devida vênia, apontamos o erro das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, que entendem ainda em vigor o Decreto-Lei nº. 911/69, permitindo a prisão civil do depositário infiel. Confira-se:

 

...também por votação majoritária, conheceu e deu provimento ao recurso, reconhecendo a plena legitimidade constitucional da prisão civil do depositário infiel, nos casos de alienação fiduciária em garantia...”[4].

Nada impede, todavia, que nova lei crie novamente a prisão civil do depositário infiel. Lei assim terá o beneplácito da Constituição Federal. E é justamente o que fez o novo Código Civil (Lei nº. 10.406/02), que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, nestes termos:

 

“Art. 652. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos”[5].

Restaurou-se, assim, a possibilidade da prisão do depositário infiel.

 

É certo que tal disposição pode criar problemas para o Brasil em nível internacional, pelo descumprimento de um Tratado ratificado. Mas, em se tratando de direito civil interno, é indiscutível agora o cabimento da prisão do depositário infiel.

 

Em conclusão, em nosso entendimento, embora sempre houvesse permissão constitucional, não era possível no Brasil a prisão civil do depositário infiel, em face da inexistência de lei em vigor que a determinasse, sendo que a lei que a determinava foi revogada pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), tendo agora sido restabelecida pelo novo Código Civil.

 



[1] Especialista em Direito pela Universidade Paranaense–Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá–UEM. Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo–USP. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Lisboa–Portugal. Professor Titular de Direito Civil nas Faculdades Integradas Curitiba–FIC. Professor de Direito Civil na Escola do Ministério Público e na Escola da Magistratura do Paraná. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros (entre outros): Separação e divórcio: teoria e prática, pela ed. Juruá, em 8ª. edição; Abuso do direito, pela ed. Juruá, em 4ª. edição; Responsabilidade civil no direito de família, pela ed. Juruá, em 3ª. edição; Curso de direito civil: teoria geral do direito civil, v. 1, pela ed. Juruá; Direito sucessório do cônjuge e do companheiro, pela ed. Método; e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas; Direito civil: direito das sucessões, v. 8, pela ed. Revista dos Tribunais.

[2] Vide, a propósito, CARVALHO NETO, Inacio de. Separação e divórcio: teoria e prática. 9. ed. Curitiba: Juruá, 2002, item 15.8, p. 472-476.

[3] É interessante se atentar para estas datas porque, embora a Convenção seja de 22 de novembro de 1969, somente em 1992 foi ela ratificada pelo Brasil, razão pela qual vigeu no Brasil por tanto tempo a lei que previa a prisão do depositário infiel.

[4] STF – Pleno – RE nº. 206.482-3 – Rel. Min. Maurício Corrêa – j. 27.05.98.

[5] Vide, a propósito, CARVALHO NETO, Inacio de; FUGIE, Érika Harumi. Novo Código Civil comparado e comentado: contratos e obrigações extracontratuais. Curitiba: Juruá, 2002, v. 3, comentários ao art. 652, p. 137-138.